O
jornal O
Globo repercutiu
o lançamento do livro Grey
Wolf: The Escape of Adolf Hitler,
dos britânicos Gerrard Williams e Simon Dunstan, segundo os quais o
ditador nazista não morreu no famoso bunker. Diversos locutores de
telejornais insistem em pronunciar “bánker”, segundo a famosa
lei “por que o simples se o complicado também serve?”, mas em
alemão se diz “búnker” mesmo, soando às vezes “bunka”.
Mas
então onde morreu Hitler? Na Argentina, numa casa de madeira
localizada em Villa La Angostura, na Patagônia. Abel Basti,
jornalista argentino que mora em Bariloche, diz entretanto que ele
foi o primeiro a revelar “a verdadeira história de Hitler”, que
fugiu do bunker três dias antes da data de sua morte oficial e o fez
na companhia de sua amante e depois esposa Eva Braun. Basti, aliás,
acusa os britânicos de plágio.
A
versão não é nova e mistura-se a algumas lendas do nazismo
nascidas na América do Sul, de ampla circulação em todo o Brasil
meridional. Motivos para que se consolidem os há em profusão. Este
autor, certa manhã em que tomava café numa padaria de Ijuí (RS),
na década de 1970, foi abordado por um caminhoneiro que se
apresentou como ex-motorista de Rommel, a famosa raposa do deserto.
Tais lendas às vezes vêm misturadas a documentários sérios,
elaborados e apresentados por qualificados profissionais de
jornalismo, no rádio, na televisão e, naturalmente, também na
imprensa escrita, onde quase sempre saíram primeiro.
A
imprensa escrita foi a primeira a localizar a casa onde Hitler e Eva
teriam residido. Situada num terreno de 400 hectares, às margens do
lago Nahuel Huapi, cartão postal da região, é uma construção de
madeira e atualmente está à venda.
Submarino
Mas
como Hitler veio parar ali? Ele teria sido levado, com a conivência
dos Aliados, de Berlim à Espanha, de onde, sob a proteção de
Francisco Franco, então no poder, foi de submarino à Argentina,
fixando-se na Patagônia. Diz-se também que nem Stalin nem
Einsenhower acreditavam que os corpos queimados encontrados no bunker
fossem de Aldof Hitler e de Eva Braun.
Diz-se
que o piloto que os resgatou, ao revelar a verdadeira história, foi
internado num hospício, onde morreu. Diz-se que não era piloto, era
pilota. Diz-se que o crânio de Hitler, num museu de Moscou, não
pode ser dele porque é de mulher. Diz-se isso, diz-se aquilo. Mas
onde está a verdade?
O
que agora é retomado, pois essas coisas são retomadas ciclicamente,
baseia-se em grande parte no livro Ultramar
Sul: a operação secreta do Terceiro Reich,
dos autores argentinos Juan Salinas e Carlos de Nápoli, publicado
pela Civilização Brasileira (490 páginas, R$ 57,90) e disponível
no mercado editorial.
Mas
a pulga atrás da orelha do leitor surge porque de fato em 10 de
julho de 1945 chegou à base naval de Mar del Plata o submarino
alemão U-530, cujo comandante, Otto Wermut, e toda a tripulação se
entregaram à Marinha Argentina e foram depois repatriados para os
EUA. O sobrenome do comandante significa absinto em alemão e dá
nome a um aperitivo conhecido no Brasil como vermute. Quem conta a
tal fuga acaba por narrar junto que no caminho o submarino, já em
águas do Atlântico, afundou o cruzador brasileiro Bahia. Fizeram
isso bêbados pois era temerário provocar vitoriosos que celebravam
o fim da Segunda Guerra Mundial. Talvez estejam bêbados alguns dos
que contam essas histórias em botecos, onde elas são ouvidas e
depois repassadas como verdades históricas.
Em
1947, também o húngaro Ladislao Szabo dedicou o livro Hitler
está vivo,
repercutido no jornal argentino La
Crítica,
sobre uma suposta base alemã na Antártida. Segundo Szabo, a
expedição alemã deu o nome de Nova Berchtesgaden à base, em
alusão à cidade dos Alpes onde os hierarcas nazistas se reuniam em
suas mansões.
Algumas
semanas depois do U-530, chegou a Mar del Plata outro submarino, o
U-977, comandado por Heinz Schaeffer, que desmentiu o autor húngaro
num livro publicado em 1952, onde conta o recorde obtido: 66 dias
submerso. Quanto ao cruzador Bahia, a Marinha do Brasil investigou e
concluiu que ele afundou por acidente, segundo relato de um dos 336
sobreviventes, o primeiro-tenente Lúcio Torres Dias.
Impunidade
Na
internet, em http://www.barilochenazi.com.ar,
os interessados podem encontrar fotos e resumos do livro de Abel
Basti, ex-jornalista do prestigioso jornal Clarín,
realmente assombroso, que causa desconcerto e perplexidade: Hitler
en Argentina,
(412 páginas, 250 imagens, com fotos e documentos inéditos).
Os
nazistas levaram a extremos jamais imaginados a crueldade humana.
Imaginar que seu maior líder tenha escapado e morrido velho, na
companhia dos filhos, impune, se não é lenda, poderá ser uma das
maiores reportagens de todos os tempos. Impossível o que é narrado
como lenda? Não, se considerarmos que o criminoso de guerra Joseph
Mengele morreu impune no Brasil, afogado na praia de Bertioga, e
morava em Embu (SP) por décadas, sem ser importunado por ninguém.
Como
se vê, nesta parte do Mundo, como já demonstraram à saciedade
escritores como o Prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Márquez
e tantos outros autores do ciclo da literatura fantástica, lendas e
verdades históricas convivem misturadas. As fronteiras são tênues
e quase sempre móveis. A ver, como dizem os hispanohablantes.
***
[Deonísio
da Silva é escritor, doutor em Letras pela Universidade de São
Paulo, professor e um dos vice-reitores da Universidade Estácio de
Sá, do Rio de Janeiro; autor de A
Placenta e o Caixão, Avante, Soldados:
Para Trás e Contos
Reunidos (Editora
LeYa)]